segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Revolução dos pobres, não do Islã




Por Pepe Escobar, do Asia Times Online | Tradução: Coletivo VilaVudu


Fúria, fúria, contra a morte da luz.
- Dylan Thoma


Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o jihadismo – jamais passou de truque barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito.

O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em think-tanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif.


E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em voos rasantes as multidões na Praça Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas – conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar.

Diga alô ao meu suave torturador…

A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram do que estava a caminho.

Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano – bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante, caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos “tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida, contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa.

Faraó 2011 parece remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed ElBaradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado na terra-mãe.

O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor. Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de sua Guantánamo árabe. Em Washington, o establishment gostou muito.

Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da Universidade al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos esses, os dias de Mubarak de Revolução dos Bichos estão contados.

Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram ElBaradei a negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito mais em “comitês populares” que em ElBaradei.

É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge.

O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa Tiananmen – repressão linha duríssima. Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida.

O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhão de dólares anuais a título de “ajuda” – voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro das casas, implorando por “segurança”.

Issander El Amrani, do blog The Arabist (http://www.arabist.net/), destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas, todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush, dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve Mubarak.

A classe média egípcia, empobrecida mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman, torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi incendiada pelos manifestantes.

O passo do dissidente egípcio

No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque – convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que “afoga mendigos no Nilo”.

Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de Mubarak, aplicado  regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime – também em crise, com os jovem obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados).

Não surpreende pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia, estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado.

O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos “terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários.

Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do Kefaya (“Basta!”) – movimento popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era La lil-tamdid, La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”) [mais, sobre o movimento, em http://en.wikipedia.org/wiki/Kefaya].

O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários experientes da internet.

Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de Mubarak dia 16 de abril –, e que inspirou a criação do movimento online de mesmo nome (Facebook. Sobre o movimento, ver http://www.wired.com/techbiz/startups/magazine/16-11/ff_facebookegypt ).

O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens influenciados pelo movimento Kefaya  preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não querem que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de Revolução dos Bichos precisa dolorosamente de alguma catarse.

Rebelo-me, logo, existo [Albert Camus]

Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político orgânico, de base.

Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento, furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo (mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet).

Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”.

É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede al-Jazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a internet.

É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casa para abrigar manifestantes e organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas dos postos de polícia de Mubarak.

Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (…) enfrentam uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda a história.”

A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão?

O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial.

Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma “estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches. Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova ordem política para o Oriente Médio.

A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.



http://www.outraspalavras.net/2011/01/31/revolucao-dos-pobres-nao-do-isla/
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Os EUA flertam com o fundamentalismo egípcio

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Outras Palavras
tem dado amplo destaque, nas últimas semanas, aos levantes populares que sacodem parte dos países árabes. São o grande fato novo do cenário internacional, por muitos motivos. Sacodem uma região paralisada há décadas — primeiro, por uma geopolítica mundial que dividia o planeta entre aliados dos Estados Unidos e da União Soviética; mais tarde, com a migração, a órbita norte-americana, de parte das ditaduras que girava em torno da URSS. Expressam que uma nova cultura política, marcada pela ação direta de cidadãos que se conectam em rede, expande-se também onde não se suspeitava. Uma marca essencial das revoluções tunisiana e egípcia, mas também dos protestos na Jordânia, no Yêmen e na Argélia é o fato de não se darem sob a liderança de partidos políticos, nem de movimentos sociais tradicionais.

Neste aspecto está seu frescor e, também, sua debilidade momentânea. As multidões tomam as ruas, enfrentam exércitos, derrubam governos (como na Tunísia) ou os fazem balançar — mas não têm como constituir  (contra-)poder. As antigas formas de organização ainda imperam. No Egito, há o próprio governo Mubarak, o exército e… a Fraternidade Muçulmana. Há alguns dias, seus dirigentes provocaram surpresa, ao anunciar que já não reivindicam a deposição do presidente.

Mas o que é a Fraternidade? Dois textos ajudam a conhecê-la melhor. Redigido por Wendy Kristianasen e publicado em abril de 2010 na Biblioteca Diplô, o ensaio “Os Irmãos Muçulmanos divididos” (tradução de Jô Amado) é um ampla radiografia do movimento: origens, história, ramificações nos diversos países árabes, ideologia, formas de agir.  Já “Washington e a Fraternidade Muçulmana” acaba de ser publicado, na excelente New York Review of Books”. Está disponível em Outras Palavras, com tradução do coletivo Vila Vudu. Pode ser surpreendente, para quem (como a velha mídia) acostumou-se a enxergar o Oriente Médio dividido basicamente entre os Estados Unidos e a tradição fundamentalista islâmica.

O texto relata com riqueza de dados, a colaboração de décadas que Washington manteve com a Fraternidade — que atua ao mesmo tempo como Previdência para-estatal, sistema de escolas religiosas (madrassas) e força política. Ela era vista como contraponto ao nacionalismo árabe dos anos 1950 ou, pouco mais tarde, à presença da União Soviética no Oriente Médio. Nesse aspecto, as relações que manteve (e mantém) com os EUA assemelham-se às da própria Al-Qaeda, cuja expansão foi estimulada pela Casa Branca, no esforço para expulsar a URSS do Afeganistão.

No intrincado cipoal político do Oriente Médio, quase tudo tem bem mais de um sentido. A Fraternidade é, ao mesmo tempo,  peça importante na oposição aos regimes pró-EUA, na região. Esta contradição pode abrir brechas para rebeliões populares que parecem se opor tanto às ditaduras apoiadas pelo Ocidente quanto aos fundamentalismos religiosas.

http://ponto.outraspalavras.net/2011/02/08/os-eua-e-a-fraternidade-muculmana/

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Washington e a Fraternidade Muçulmana

sábado, 12 de fevereiro de 2011

CELSO AMORIM ANALISA AS REVOLTAS POPULARES NO ORIENTE MEDIO


"É preciso respeitar a decisão do povo de cada país"

Em entrevista exclusiva à Carta Maior, o embaixador Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, analisa os recentes acontecimentos no Oriente Médio e norte da África e suas possíveis repercussões. O ex-chanceler chama a atenção para o fato de que as revoltas populares ocorrem em países considerados “amigos do Ocidente” que não eram alvo de nenhum tipo de crítica ou sanção. “Há algumas lições a serem tiradas destes episódios. A primeira delas é que é preciso respeitar os movimentos internos e não querer impor mudanças a partir de fora”, diz Amorim, defendendo a postura adotada pela diplomacia brasileira nos últimos anos.

Data: 11/02/2011


“Há algumas semanas, se fosse realizada uma consulta entre especialistas em política internacional pedindo que apontassem dez países que poderiam viver proximamente uma situação de conflito político-social, duvido que algum deles apontasse a Tunísia”.

O embaixador Celso Amorim, ministro de Relações Exteriores do Brasil por mais de oito anos (dois mandatos do governo Lula e mais um período no governo Itamar Franco), iniciou a conversa telefônica, direto da embaixada do Brasil em Paris, chamando a atenção para a complexidade e o dinamismo do cenário internacional e para o baixo nível de conhecimento que se tem sobre a situação de muitos países. Em entrevista exclusiva à Carta Maior, concedida no início da tarde desta sexta-feira, Celso Amorim analisa os recentes acontecimentos no Oriente Médio e no norte da África e suas possíveis repercussões. Como que para ilustrar o dinamismo mencionado por Amorim, quando a entrevista chegou ao fim, Hosni Mubarak não era mais o presidente do Egito.

Na entrevista, o ex-chanceler brasileiro chama a atenção para o fato de que as revoltas populares que o mundo assiste agora, especialmente na Tunísia e no Egito, acontecem em países considerados “amigos do Ocidente” que não eram alvo de nenhum tipo de sanção por parte da comunidade internacional. “Isso mostra que a posição daqueles que defendem sanções contra o Irã é equivocada”, avalia. Amorim acredita que uma mudança política no Egito terá impacto em toda a região, cuja extensão ainda é difícil de prever. E defende a política adotada pelo Brasil nos últimos anos apostando na capacidade de diálogo do país, reconhecida e requisitada internacionalmente.

CARTA MAIOR: Qual sua avaliação sobre a rebelião popular no Egito e seus possíveis desdobramentos políticos e geopolíticos na região?

CELSO AMORIM: Uma primeira característica que considero importante destacar é que os protestos que estamos vendo agora são movimentos endógenos. É claro que eles se valem de novas tecnologias e de alguns valores modernos, mas são motivados pela situação interna destes países. O Egito e a Tunísia, cabe assinalar também, não estavam sob sanções por parte do Ocidente. Isso mostra que a posição daqueles que defendem sanções contra o Irã é equivocada. Sanções só reforçam internamente um regime. Uma das expectativas das sanções contra o Irã era atingir a Guarda Revolucionária. Na verdade, só atingem o povo. O Iraque foi submetido a sanções durante anos e Saddam só ficava mais forte. Não havia, repito, sanções contra a Tunísia e o Egito, países considerados amigos do Ocidente e aliados inclusive na guerra contra o terrorismo, implementada pelos Estados Unidos.

Acredito que uma mudança política no Egito terá certamente um impacto em toda região, podendo inclusive provocar uma mudança de relacionamento com países como Israel e Síria. Mas isso dependerá da evolução dos acontecimentos.

CARTA MAIOR: A sucessão de acontecimentos semelhantes em países do Oriente Médio e do Norte da África já pode ser considerada como uma onda capaz de expandir para outros países também?

CELSO AMORIM: Potencialmente, sim. Mas é difícil prever. Depende dos desdobramentos do Egito. Não há dúvida que Mubarak sairá [enquanto concedia a entrevista, a renúncia do ditador egípcio foi confirmada]. A questão é saber como ele sairá. Certamente haverá uma mudança no regime político do Egípcio. Não sabemos ainda em que intensidade. Mas é importante ter em mente que as duas forças organizadas no país são as forças armadas e a Irmandade Islâmica. A Irmandade Islâmica não é nenhum bicho papão. Cabe lembrar que muita gente tem citado a Turquia (que tem um partido islâmico no poder) como um modelo de caminho possível para o Egito.

A influência dos acontecimentos no Egito deve se manifestar em ritmos e intensidades diferentes, dependendo da realidade de cada país. Como a Tunísia nos mostrou, é preciso esperar o inesperado.

CARTA MAIOR: A diplomacia ocidental foi pega de surpresa por esses episódios?

CELSO AMORIM: Certamente que sim. O próprio presidente Obama admitiu isso ao falar dos relatórios dos serviços de inteligência dos Estados Unidos. Ninguém estava esperando o que aconteceu na Tunísia que acabou servindo de estopim para outros países como Yemen e Egito. Nos mais de oito anos que trabalhei como chanceler nunca ouvi uma palavra de crítica sobre a Tunísia. E alguns conceitos fracassaram. Entre eles o de que se o país é pró-ocidental é necessariamente bom. Os Estados Unidos seguem poderosos no cenário internacional, mas frequentemente superestimam essa influência.

Há algumas lições a serem tiradas destes episódios. A primeira delas é que é preciso respeitar os movimentos internos e não querer impor mudanças a partir de fora. As revoltas que vemos agora (na Tunísia e no Egito) iniciaram dentro destes países contra governos pró-ocidentais e não nasceram com características antiocidentais ou anti-imperialistas.

CARTA MAIOR: O Oriente Médio é hoje uma das regiões mais conflituosas do planeta. Os levantes populares que estamos vendo podem ajudar a melhorar esse quadro?

CELSO AMORIM: Creio que teremos agora um quadro mais próximo da realidade. Há uma certa leitura simplificada do Oriente Médio que não leva em conta o que o povo desta região pensa. Não é possível ignorar a existência de organizações como a Irmandade Islâmica ou o Hamas. Se ignoramos fica muito difícil traçar uma estratégia que leve a uma paz estável.

CARTA MAIOR: O jornalista israelense Gideon Levy escreveu ontem no Haaretz dizendo que o Oriente Médio não precisa de estabilidade, referindo-se de modo à crítica à suposta estabilidade atual, que seria, na verdade, sinônimo de pobreza, desigualdade e injustiça. Qual sua opinião sobre essa avaliação?

CELSO AMORIM: De fato, a desigualdade social é uma das causas muito fortes dos problemas que temos nesta região. É um fermento muito grande para revoltas. A verdadeira estabilidade não se resume a ter um determinado governante no poder. Não basta ter eleição. É preciso aceitar o resultado da eleição. Estamos falando de uma região muito complexa, com sentimentos anticoloniais muito fortes. Esse quadro exige uma flexibilidade muito grande e capacidade de diálogo com diferentes interlocutores.

CARTA MAIOR: Qual sua análise sobre a evolução dos acontecimentos no Oriente Médio à luz da política externa praticada durante sua gestão no Itamaraty?

CELSO AMORIM: Como referi antes, nós procuramos manter uma relação ampla com diferentes interlocutores. As críticas que sofremos vieram mais da mídia brasileira do que de outros países. Nossa política em relação ao Irã, por exemplo, não foi para mudar esse país. O objetivo era contribuir para a paz, tentando encontrar uma solução para a questão nuclear. Quem mudou de ideia no meio do caminho foram os Estados Unidos. O próprio El Baradei (ex-diretor geral da Agência de Energia Atômica), que agora voltou a cena no Egito, chegou a dizer, comentando a Declaração de Teerã, que quem estava contra ela é porque, no fundo, não aceitava o sim como resposta.

Acredito que nós precisamos de países com capacidade de ver o mundo com uma visão menos maniqueísta. Agora, todo mundo está chamando Mubarak e Ben Ali de ditadores. Até bem pouco tempo não era assim. A maioria da imprensa internacional não os chamava de ditadores. O importante é saber respeitar a vontade e a decisão do povo de cada país. O Brasil tem essa capacidade reconhecida mundialmente. Várias vezes fomos requisitados para ajudar na interlocução entre países. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, por exemplo, nos pediu para ajudar a retomar o diálogo com a Síria. O Brasil tem essa capacidade de diálogo que não demoniza o outro. Essa é a pior coisa que pode acontecer na relação entre os países: demonizar o outro. Não se pode, repito, ignorar a presença da Irmandade Islâmica ou do Hamas. Podemos não gostar destas organizações. Isso é outra coisa. Mas estamos que estar prontos para conversar.

Espero que o Brasil faça jus às expectativas que existem sobre ele, sobre sua capacidade de diálogo e interlocução. Não se trata de mania de grandeza. Nós temos essa capacidade de diálogo e ela é requisitada. Seguramente o Brasil tem a possibilidade, e eu diria mesmo a necessidade, de ter essa participação e ajudar a construir a paz. Até porque esses fatos nos afetam diretamente. Basta ver o preço do petróleo que está aí aumentando em função dos conflitos.

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17426

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Ministro de Dilma defende saída de Mubarak e eleição no Egito


07/02/2011 - 07h31


BERNARDO MELLO FRANCO

ENVIADO ESPECIAL A DACAR


O ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) disse neste domingo, no Senegal, que o governo brasileiro apoia o movimento que pede a queda do ditador do Egito, Hosni Mubarak.

Ele comparou a mobilização à luta contra a ditadura militar no Brasil e defendeu que Mubarak convoque eleições para permitir uma transição para a democracia.

"O Brasil está acompanhando com muita atenção e disposto a apoiar esses movimentos", disse o ministro, que representa a presidente Dilma Rousseff no Fórum Social Mundial, em Dacar.

Segundo Carvalho, o Brasil espera que Mubarak tenha "bom senso" e convoque eleições diretas para interromper os conflitos de rua.

"Os movimentos de massa se mostram de tal forma fortes que é muito importante uma atitude de Mubarak evitando a violência, que abra a possibilidade de novas eleições", afirmou o ministro.

"Temos a expectativa de que Mubarak tenha bom senso e evite o derramamento de sangue."
Ele disse ainda que o Brasil espera que o Egito não embarque num regime fundamentalista, cenário que é previsto por alguns no caso de um eventual governo liderado pela Irmandade Muçulmana.

Questionado se o Planalto seguiria a posição americana, ele disse que o país não defende "intervenção direta" e manterá atitude de "cautela e apoio à democracia".

O ditador egípcio foi alvo de protestos na marcha que abriu o Fórum, que reúne movimentos sociais e partidos de esquerda de todo o mundo. Uma das faixas trazia a inscrição "Mubarak assassino".

OPINIÃO PESSOAL

Questionados, o Itamaraty e o Planalto não quiseram comentar as declarações de Carvalho.
Desde o início dos protestos contra Mubarak, o Ministério das Relações Exteriores divulgou duas notas sobre a situação do Egito --a última delas defendeu um "aprimoramento institucional e democrático" do país.

Já a assessoria do ministro disse que as declarações representam a opinião pessoal de Carvalho sobre o Egito, não do governo brasileiro.

Mas acrescentou em nome do Brasil: "O Brasil tem uma posição de cautela, observação e apoio à democracia em relação aos recentes conflitos no Egito", disse. "O Brasil não pedirá a saída imediata de Mubarak."
Colaborou a SUCURSAL DE BRASÍLIA

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"Brasil prefere as pressões discretas

 3 Fev 2011
Valor Economico 
De São Paulo 

Embaixador Affonso Celso de Ouro-Preto fala de relações mais pragmáticas do país com os países árabes.

Faz três décadas que o Brasil mantém relações políticas e comerciais mais estreitas com os regimes ditatoriais e autoritários do mundo árabe. E, a exemplo de muitos outros países, nunca fez muitos esforços para defender as bandeiras caras a qualquer democracia de maior liberdade política, como o respeito a direitos civis e à igualdade. Bandeiras que nas últimas semanas têm mobilizado cidadãos no norte da África e Oriente Médio e que, sobretudo, mexeu com o regime de Hosni Mubarak no Egito.

“Acho que não havia oportunidades. Esses países eram guiados por uma ideia básica: nacionalismo. Nacionalismo, um sentimento que nós reconhecemos a legitimidade. Essa era a bandeira desses países recém-independentes. E criticar países que estão independentes há 50 anos ou menos foi algo que nenhum governo brasileiro fez”, diz o ex-embaixador Affonso Celso de OuroPreto, que depois de uma longa carreira diplomática ocupou de 2004 até o ano passado o posto de representante brasileiro para Assuntos do Oriente Médio.

Sobre o Egito, diz que o Exército deverá se manter como “partido” mais influente do país e que é improvável que a oposição islâmica chegue ao poder.

Aos 72 anos, em seu primeiro ano de aposentadoria, Ouro-Preto recebeu ontem o Valor em sua cobertura no bairro de Higienópolis, em São Paulo.

A seguir os principais trechos da conversa sobre o histórico de relações entre o Brasil e os países árabes.

Valor: Quais os principais fatos que historicamente ajudaram a moldar as relações que o Brasil tem com o mundo árabe?

Affonso Celso de Ouro-Preto: O Brasil e a América do Sul tinham poucas relações com o mundo árabe. Tiveram relações triangulares: metrópoles, ou exmetrópoles, e depois o mundo árabe. No caso do Brasil, há vários fatores que levaram a uma maior aproximação. Há algo como 10 milhões de brasileiros de origem árabe. Durante uma época, 10% dos parlamentares brasileiros eram de origem árabe. Além de professores, empresários e artistas. Isso é um fator que impulsiona a aproximação.

Por outro lado, voltando na história, a cultura e a civilização árabes marcaram profundamente Portugal. E, finalmente, há o fato de que o Brasil é uma potência regional e como tal não pode ignorar esse grupo de países árabes. Tudo isso faz com que haja uma aproximação político-econômica muito mais densa com os países árabes do que houve há 20 anos.

Valor: Que governo brasileiro deu mais ênfase para essa aproximação?

Ouro-Preto: O governo anterior, do presidente Lula, começou a fazer isso em grande escala. Mas não foi uma ruptura, foi um adensamento de algo que já estava acontecendo. O Brasil , nos anos 50, mandou um batalhão para Suez, para integrar as forças daONU, para separar as forças israelenses das egípcias. Isso depois da guerra de 1956. Essas forças ficaram de 1956 a 1967. E, em 1967, foram retiradas, quando houve a Guerra dos Seis Dias. Há um ponto na linha entre a Faixa de Gaza e o Egito que se chama Brasil, porque lá estava, acho, o comando do batalhão brasileiro. No Líbano, indo da Síria para Beirute, você vê a bandeira brasileira em muitas casas.

Valor: Essas relações sempre foram bem vistas pelos EUA?

Ouro-Preto: Mais ou menos. Eles teriam preferido que a linha brasileira e sul-americana seguisse a liderança americana, o que não foi sempre o caso. Não houve um receio ou uma hostilidade, mas tampouco houve uma simpatia total. Os EUA têm uma linha com prioridades específicas, que passa por uma proximidade muito estreita com o Estado de Israel e com uma série de países em crise hoje.

Valor: O Brasil ao longo das décadas tomou posições a favor do mundo árabe ainda que contrariassem interesses dos EUA e de Israel?

Ouro-Preto: O Brasil teve relações estreitas com países que eram vistos com suspeita pelo governo americano. A Síria, por exemplo. Curiosamente as relações mudaram e hoje os EUA têm boas relações com a Síria. Não tinham há 10 anos. Outro país é a Líbia, que hoje tem boas relações com os EUA e há 10 ou 15 anos, eram péssimas. As relações são muito fluidas.

Valor: A exemplo do descontentamento manifestado pelos EUA no ano passado em relação a aproximação do Brasil e da Turquia com o Irã — embora não seja um país árabe —, houve outros episódios em que os EUA se mostraram irritados com as gestões brasileiras no mundo árabe?

Ouro-Preto: Diretamente não. Mas visitas e contatos com a Síria e com a Líbia... Os EUA tiveram relações cortadas com a Líbia e a Síria havia sido posta mais ou menos no eixo do mal. Foi bom que o Brasil estivesse lá porque podia transmitir informações, expressar opiniões de um lado e de outro. Mas não houve um choque com os EUA por causa dessa política externa, que aliás, foi seguida por muitos países da América do Sul.

Valor: Durante a Guerra Fria, EUA e URSS tinham influências na região. Isso orientou as ligações do Brasil com os países árabes?

Ouro-Preto: Na realidade o mundo árabe mudou muito politicamente com o fim da Guerra Fria. Havia uma série de países onde a URSS tinha uma posição forte e no mundo árabe havia um choque herdado da Guerra Fria. Valor: Foi o caso do Egito. Ouro-Preto: O Egito, até os anos 70, mantinha relações muito estreitas com a URSS. Com o governo Sadat, que acabou em 1979, presidente que foi assassinado, o Egito se distanciou da URSS. Em 1973 fez a guerra com Israel em 1979, fez a paz com Israel. E daí passou a ser a menina dos olhos dos EUA, quando poucos anos antes era visto com muita preocupação pelos EUA. As relações são tortuosas com esses países que não têm unidade entre si. Países cuja independência é muito recente. O norte da África tornou-se independente nos anos 50, 60. A Síria, mais ou menos, na Segunda Guerra. O Egito foi ocupado até depois da Segunda Guerra.

Valor: A Guerra Fria limitou as relações brasileiras com os árabes?

Ouro-Preto: A aproximação mais forte do Brasil se deu depois do fim da URSS. O caso do Egito: a presença soviética importante, que se traduziu em venda de equipamento militar e etc. durou até o início dos anos 70 — quando no Brasil não havia nem começado o governo Geisel e não havia ainda uma preocupação com os países árabes. Foi no final dos anos 80, como fim da Guerra Fria, que começou um interesse crescente do Brasil nessa região.

Valor: Nas últimas décadas, a relação do Brasil com ditaduras, com governos autoritários nessa região foi motivo de divisões na diplomacia e nos governos brasileiros sobre qual seria melhor forma de lidar com eles?

Ouro-Preto: Não posso lhe dizer o número exato, mas a metade da humanidade era composta até recentemente por governos autoritários. Talvez dois terços. Tinha todo o bloco soviético; tinha o atual principal parceiro comercial do Brasil, a China; tinha três quartos da África, vários países latino-americanos, inclusive o Brasil. Ser autoritário era frequente e ainda o é hoje. A ideia de que só teríamos relações com países democráticos não ocorreu a ninguém, nem aos EUA, porque se não ficaríamos com um número muito reduzido de países.

Valor: De qualquer forma, desde pelo menos a redemocratização, houve governos brasileiros que incluíram em suas agendas com os países árabes a defesa de liberdades civis, de respeito aos direitos humanos, de mais liberdade? Houve tentativas de pressão?

Ouro-Preto: Não creio, não. A linha brasileira tem sido de que fazer disso uma causa pública não leva a resultados concretos. É preferível exercer pressões discretas, isso é o que o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim dizia. É possível que o governo Dilma seja mais vocal. Provavelmente vamos ter neste governo uma defesa maior dessas bandeiras, mas que pode levar a situações complicadas. Vamos condenar EUA por causa de Guantánamo? Por causa dos prisioneiros que foram transferidos para o Egito para serem torturados? Vamos condenar os EUA por isso? Não me parece tão fácil.

Valor: Pressionar os mandatários árabes discretamente foi uma prática dos governos brasileiros depois da redemocratização?

Ouro-Preto: Na época do Fernando Henrique Cardoso, eu não me lembro que isso tenha estado na agenda de forma muito clara. Porque infelizmente não eram causas muito discutidas pela comunidade internacional. Que países defendiam os direitos humanos nos 80? O Egito, por exemplo, foi criticado por desrespeito aos direitos humanos? Nunca foi. Os aliados do Ocidente nunca foram; os outros, sim. O Egito, principal aliado do Ocidente, sobretudo dos EUA, no mundo árabe nunca foi criticado. E provavelmente tinha muitas razões para ser criticado. As críticas por direitos humanos na política internacional seguiram mais linhas de interesse nacional do que propriamente uma preocupação com direitos.

Valor: Com respeito ao perfil das relações econômicas e comerciais entre o Brasil e os árabes, que setores e empresas mais se beneficiaram da aproximação diplomática?

Ouro-Preto: O comércio aumentou muito. Quem se beneficiou foi setor de alimentos: carne, frango, soja e outros. No Egito, cerca de metade dos alimentos que consome é importada.

Valor: O senhor se lembra de como foram as relações pessoais, de maior ou menor simpatia, dos presidentes eleitos brasileiros com líderes árabes?

Ouro-Preto: O Brasil teve relações muito boas com Assad, da Síria e com a Autoridade Palestina, com Mahmoud Abbas. O expresidente Fernando Collor não dava muita importância aos países do chamado terceiro mundo. Itamar Franco, sim. Mas se concentrou mais na América Latina. E Fernando Henrique não fez dos países árabes uma prioridade. Defendeu mais a bandeira da América do Sul.

Valor: O Brasil teve contatos nesses anos com opositores árabes. Manteve contatos em algum momento com a Irmandade Muçulmana, do Egito, por exemplo?

Ouro-Preto: Quando o regime é autoritário é meio difícil manter contato com a oposição. A Irmandade Muçulmana estava proibida. O que havia eram pessoas da Irmandade que se apresentavam nas eleições, eleições cuja legitimidade eram postas em dúvida. Mas contatos com a Irmandade Muçulmana como tal — um movimento criado nos anos 20 —, não. Seria visto pelo governo egípcio como um acinte. Não era possível fazer isso. Nem nos bastidores. Com a Irmandade Muçulmana tivemos contatos na Jordânia, onde eles são um partido da oposição legalizado. A Irmandade de lá nasceu da mesma vertente da do Egito.

Valor: Como foram as relações dos governos brasileiros com o presidente do Egito, Hosni Mubarak?

Ouro-Preto: Cordiais, estreitas. O Egito é o maior país árabe. Com 80 milhões de habitantes, relativamente pobre. Mas que curiosamente, com projeções econômicas altamente favoráveis, como muitos países árabes. O Egito, em particular, não estava atravessando uma crise econômica. O que houve foi um tremendo desgaste de um governo que se prolonga não há 30 anos, mas há 60 anos. O regime militar começou com Nasser, nos anos 50. Houve um desgaste. Houve uma liberalização da economia, que levou a disparidades mais acentuadas entre classes sociais, mas não é verdade que o país estava voltando a crise econômica.

Valor: Vendo em perspectiva, havia espaço nas relações que o Brasil construiu com os países árabes para que levantasse de maneira mais efetiva questões sobre mais liberdade política, direitos civis e direitos humanos. O Brasil não aproveitou oportunidades para tratar disso?

Ouro-Preto: Acho que não havia oportunidades, não. Esses países eram guiados por uma ideia básica: nacionalismo. Nacionalismo, um sentimento que nós reconhecemos a legitimidade. Essa era a bandeira desses países recém-independentes. E criticar países que estão independentes há 50 anos ou menos foi algo que nenhum governo brasileiro fez. Nem os militares. Bom, esses não teriam muita razão. Mas o governo Geisel foi mais forte. O Brasil votou na ONU contra Israel, definindo o sionismo como movimento racista. Causou escândalo. Depois a ONU voltou atrás.

Valor: O Brasil foi condescendente com a falta de direitos humanos, liberdades?

Ouro-Preto: Essa palavra não cabe. O Brasil não deu prioridade a essa questão. Ninguém deu.

Valor: Democracia liberal é um conceito adaptável ao mundo árabe?

Ouro-Preto: Afirmou-se muitas vezes que a cultura islâmica não seria favorável ao desenvolvimento de instituições democráticas. Mas há várias sociedades islâmicas — embora não árabes — democráticas: a Turquia, Indonésia e com algumas reticências o Paquistão. No mundo árabe, dois exemplos com instituições democráticas: Líbano e a Autoridade Palestina.

Valor: Dos líderes do mundo árabe que o senhor conheceu quando ocupou o posto de representante para Assuntos do Oriente Médio qual a impressão que teve deles. O senhor conheceu Mubarak?

Ouro-Preto: Não. Apesar de o Egito ser uma república é um regime quase imperial. Ter acesso ao Mubarak é dificílimo. Mas eu falei várias vezes com o Abu Ghait, ministro das Relações Exteriores do Egito e que continua nesse novo governo. É um diplomata, um homem inteligente, competente, muito amável, dado a fazer ironias. Um diplomata. Falei também com Amr Mussa. Conheci muito bem toda a liderança palestina.

Valor: Quem hoje parece ter mais chances para suceder Mubarak e qual o senhor acredita que poderá ser o desfecho dessa crise?

Ouro-Preto: Os acontecimentos de hoje são uma surpresa para todos. Ninguém sabe o que será o Egito de amanhã. Curiosamente dois nomes que estão sendo mencionados [para suceder Hosni Mubarak] são muitos conhecidos pelo Brasil. Um deles Mohamed ElBaradei, que está sendo um porta-voz da oposição foi secretário-geral da AIEA, em Viena, com quem tivemos relações muito estreitas. Eu fui embaixador em Viena, e o conheço muito bem, o Itamaraty o conhece muito bem. Já esteve no Brasil. O outro nome de quem está se falando, Amr Mursa, secretário-geral da Liga Árabe, veio pelo menos quatro vezes ao Brasil e é um bom amigo do ex-chanceler Celso Amorim. Mas estamos num momento de crise, cada dia é uma situação nova. Tenho um pouco de dúvida sobre ElBaradei ou Mursa. Há um partido lá chamado Exército e não sei se haverá espaços.

Valor: A Irmandade Muçulmana poderá ser governo?

A Irmandade Islâmica tem mostrado uma grande habilidade de não se colocar em primeiro plano. Numa eleição parlamentar, eles certamente terão uma bancada importante. Não tenho certeza de que eles tenham a maioria, mas serão uma força política importante. Quem vai governar o Egito... Até agora tudo leva a crer ainda que a força política essencial no Egito continuará sendo o Exército. E o Exército continuará a ordenar a situação e está desempenhando um papel próprio — até agora não entrou em choque — apesar de os generais de alta patente terem sido nomeados pelo presidente. É visto como instituição nacional muito popular. Provavelmente haverá eleições, com bancada dos irmãos muçulmanos. Mussa e ElBaradei não têm partido atrás deles. Baradei viveu maior parte da vida na Europa. É muito conhecido internacionalmente, mas no Egito, menos. Mussa a mesma coisa. O governo egípcio, como bom governo autoritário, eliminou, tirou do primeiro plano, qualquer personalidade forte. Então tirando o Mubarak há um vazio. O vice-presidente que Mubarak nomeou, Omar Suleiman [chefe do serviço secreto] — é o homem que tentou negociar uma aproximação entre os dois movimentos palestinos, o Hamas e a Fatah. É respeitado, aparentemente, e parece haver um início de delegação de poderes a ele por parte de Mubarak.

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